di BRUNO CAVA.
22/12/2011
Não sou a favor do governo Dilma nem sou contra, mas também não sou neutro. Muito pelo contrário. Como consequência, já fui chamado de sofista de segunda e até de gato de Schrödinger, mas é isso mesmo. Gosto de complicar quando a simplificação nos deixa cegos ao essencial, achatando o debate. E não tenho problemas com dilemas críticos, tomando o cuidado de não esclerosar como algum cri-cri à moda da esquerda francófila. Tenho pra mim muito claro um compromisso ético-estético com a potência da pobreza, que deseja o luxo de viver plenamente e reinventar o mundo.
Sim, me dediquei à campanha por Dilma em 2010, assim como por Lula em 2002 e 06. Faria de novo, porque em nenhum caso havia alternativa. Agora, embora meu entusiasmo não seja caro, em nenhum momento esse governo o mereceu. A bem da verdade, no Brasil de 2011, nenhuma força ou coalizão partidária merece o tesão do militante. Quem desfrutou momentos nos anos Lula talvez já tenha se esquecido quão decepcionante costuma ser a dinâmica representativa, seus acordões, conchavos, platitudes, balcões de negócios e tráficos de influência. Por causa disso, dessa percepção desencantada da representação, não fiz como alguns companheiros que, ao longo de 2011, despencaram do otimismo diretamente para um sentimento de traição.
Ser a favor ou contra o governo como ente orgânico me soa secundário. É perder tempo em discussão sem futuro. Engajar-se na política não pode ser o mesmo que torcer pra time de futebol. Como se fosse caso de vestir a camisa e ficar com o clube aconteça o que acontecer. O fato de eu ter apoiado com entusiasmo e votado sem hesitar em Dilma em nada implica uma adesão automática às políticas e atitudes do governo. Ou não deveria implicar. Da mesma forma que, tivesse ganho a Marina, eu não pudesse vir a concordar com diversas políticas. No fundo, passa a eleição, não faz tanta diferença em quem eu votei. Não faço parte do governo nem da oposição. Esta obviedade preciso repetir sempre, ante tantos soldados governistas e oposicionistas. São os apparatchiks pra quem as efemérides não passam de pretexto para reforçar ou desgastar a imagem do governo, conforme o projeto de poder a que se esteja acoplado. Militam pela imagem, pelo ibope, pela sensação. Uma prática político-partidária que se resolve num jogo de capitalização e descapitalização eleitorais.
Vocês me perdoem: isso é simplório.
Parte da esquerda está tão ocupada em atacar ou defender Dilma, com opinião pronta sobre tudo, que fica em segundo plano o problema da organização política. Falo da importância de elaborar estratégias e programas de organização e luta, de agir criativamente na articulação de forças e discursos, na coordenação de sujeitos sociais, na formulação de coisas novas que surpreendam e dêem um drible no poder constituído, que se coloquem onde não estão à nossa espreita. Em vez de uma prática futebolística tudo-ou-nada, há um campo com múltiplos elementos, que podem entrar criativamente no jogo em várias combinações. Reduzir tudo ao binarismo estou-junto ou estou-contra, além de chantagista, perde de vista a textura complicada do governo Lula-Dilma e contorna a possibilidade de qualquer inteligência política.
Mas, à análise: onde está a polivalência?
Certamente não no campo cultural, que em 2011 foi um desastre.
Não me refiro apenas ao ministério da rainha da Holanda, mas à visão estratégica da cultura enquanto processo produtivo e à visão de economia do conhecimento, adotadas por várias instâncias desse governo. Tem sido fortalecido um modelo concentrador, em que os adjetivos criativo ou sustentável tentam legitimar a aliança entre o estado e grandes conglomerados culturais-midiáticos. Que é para onde são direcionados os investimentos públicos, foco das políticas de desenvolvimento produtivo. Se, no governo Lula, com Gilberto Gil e Juca Ferreira, formou-se um bunker de resistência à indústria dos direitos autorais/patentes/copyright, de imagem e difusão, agora o gabinete como um todo funciona como correia de transmissão dessa mesma indústria. Da noite para o dia virou consenso que uma cultura proprietária e profissionalizada é fundamental para a sustentabilidade aqui dentro e a competitividade lá fora do “Brasil”. Leia-se: os oligopólios e seus medalhões que criam pouco ou nada.
Mas vejamos o Programa Bolsa Família (PBF).
À parte dos preconceitos mais chãos (o pobre não vai mais querer pegar no batente, compra de voto etc), existe uma linha crítica que o tacha de assistencialismo. Ao invés de mudanças estruturais, maquia e perpetua a pobreza, mediante o mínimo existencial. Daí é preciso construir portas de saída, de maneira que o pobre também possa se envolver na produção, com emprego formal ou chance para empreender como microempresário. Na melhor das hipóteses, a bolsa família é medida inadiável para um país com miseráveis, mas possui caráter transitório. Nessa opinião convergem muitos governistas e oposicionistas, da esquerda à direita.
Penso, contrariamente, que aí resida uma polivalência fundamental do governo Lula, que continuou com Dilma. A bolsa família é inclusão produtiva. Não se limita a resolver uma situação de emergência. Mas a propiciar condições efetivas para a cidadania, no seu pouco falado aspecto material. Articulada com o aumento do salário mínimo, certa socialização do crédito, algum acesso universitário e medidas de massificação dos serviços públicos, a transferência de renda capitaneada pelo PBF foi e continua sendo peça fundamental para a formação da nova classe média. A dita “classe C”, com 103 milhões de brasileiros (2011). Que não se limita a reproduzir os preconceitos raciais, de classe e gênero da velha-classe-média-branca-diplomada-que-vota-no-Serra. Porque eles não se incluíram como meros consumidores, mas como novos sujeitos sociais. Também aconteceu alguma migração do reino da necessidade para o reino da liberdade, num processo de empoderamento. Mesmo porque não existem “meros consumidores”, na medida em que o consumo é dimensão central para qualquer forma de empoderamento. Muito mais que uma categoria de consumo, se constituiu uma cauda longa de subjetividades, discursos e demandas. Possivelmente daqui a algumas décadas isso venha a ser conhecido como uma espécie de revolução cultural brasileira. Não dá pra negar participação nesse processo ao governo Lula, atravessado que foi pelas forças multitudinárias.
Nesse sentido, a bolsa família pode ser vista como o embrião de uma biorrenda. É uma mobilização produtiva em sua múltipla qualidade econômica, política e cultural, — o que a filosofia continental chamaria biopolítica. Então sou a favor ou contra o PBF? Sou pelo aprofundamento e subversão, isto é, pela radicalização dele na direção dessa renda para todos, só pelo enormíssimo fato produtivo de estarmos vivos e enquanto viventes sendo explorados difusamente pelos circuitos econômico-financeiros. Não porque o PBF seja humanista (embora seja), mas porque empoderador e produtivo para todos, com efeitos em várias ordens tecido social adentro. Daí, na questão concreta, ser favorável à ampliação não só do valor das bolsas, mas sobretudo no espectro de pessoas contempladas. E ser contrário às condicionalidades, bem como a todas as concepções que nele enxergam uma medida passageira de justiça social, alguma lógica etapista visando à independência futura.
Penso que o programa dilmista Brasil Sem Miséria (BSM) é desdobramento dessa política social combinada que, no fundo, foi a base da política econômica do governo Lula. O BSM também possui transferências diretas não-reembolsáveis, universalização de serviços públicos, facilitações de crédito e apoio a cooperativas (como dos catadores e recicladores). Vai na mesma direção, que faz, sim, a diferença! Na época de FHC só se falava em indicadores econométricos e financeiros, as reuniões do Copom eram eventos badalados, mas estávamos quase sempre em crise. Com Lula, o foco se tornou as pessoas concretas, não se falou tanto economês, mas paradoxalmente a economia bombou. Será por que a economia política e a geração de valor dependem, sobretudo, da mobilização da vida de todos? Em suma, o governo Dilma não arredou pé desse núcleo de política social. Está vacilando na questão das minorias, que no final das contas perfazem a maioria, porém não na centralidade das políticas sociais. Isso por si só já deveria afastar avaliações que o governo Dilma é uma merda completa.
O bicho pega mesmo é no outro carro-chefe do governo Dilma, o Brasil Maior. Estou falando não apenas do Plano propriamente dito, mas do eixo prático-discursivo que organiza as ações e políticas do governo. Brasil Maior como modelo de desenvolvimento excludente, cujo ícone tem sido a construção da usina de Belo Monte. Brasil Maior como modelo de gestão pública de interesses privados, onde a riqueza é repartida desigualmente, como na indústria do Pré-Sal e na privatização do crédito operada principalmente pelo BNDES. Brasil Maior como modelo de cidade para ricos, no urbanismo autoritário dos megaeventos, que erradica os pobres para longe. É o duplo gume do Brasil sem pobreza: inclusão social de um lado; polícia, prisão e trator do outro. Nesse campo, é lamentável o tom dogmático das declarações da presidenta e dos ministros. Se Lula efetivamente sambava táticas e compunha de improviso, parece que essa equipe chegou com uma receita de bolo e está aplicando-a doa a quem doer. E os aparelhados nos protejam!
Com Dilma, grassa o desenvolvimentismo. Ela, a mãe de ferro do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), foi emblema essa vertente rigorosamente utópica, de 2005 a 2010. Que é acelerar a história na batalha contra o tempo, no pior socialismo teleológico. O desenvolvimentismo surgiu como resposta à crise de 1929, com o nacionalismo trabalhista de Vargas, atravessou incólume os alegres anos 50, agigantou-se na ditadura cívico-militar e os PND e agora toma distância para saltos mais grandiloquentes. Grosso modo, permanece a mesma ladainha redentora do Brasil do futuro, verdeamarelo, imenso pela própria natureza. Hoje, acontece como neo-desenvolvimentismo, que é o desenvolvimentismo financeirizado. Os fluxos globais escoam da insolvência geral do Norte e caem no colo das enormes jazidas humanas no Sul: Brasil, China, Índia. Se, no governo Lula, coalhavam ambiguidades e interstícios, entre a biopolítica e o desenvolvimentismo, a coisa toda parece pender para o lado por assim dizer mais soviético. Eis o triste deja vu dilmista: os sovietes novamente vão pra escanteio, a favor da eletricidade. As brechas, de fato, estão se fechando.
O novo brasileiro forjado no Brasil Maior é o cidadão orgulhoso de seu país, doravante de Primeiro Mundo, profissional sério e previdente e trabalhador e preparado para os desafios do século 21. Ficam em segundo plano os muitos Brasis, o brasil menor das periferias, tribos, quilombos e culturas de resistência, — do rap aos hackers, dos sertanejos aos ribeirinhos aos bolivianos, da blogosfera bárbara aos índios urbanos. Esse povo macunaímico não canta o hino e produz a riqueza que o nacional expropria. Esses, senão com o porrete, são tratados com um sorriso condescendente como curiosidade folclórica, quiçá atração turística.
Falta uma perspectiva ao mesmo tempo política e antropológica, que permita desatar o nó de desenvolvimento e inclusão social. A conjunção e está sobrando. Inclusão social é desenvolvimento, — assim como qualidade é democracia, e sustentabilidade é renda para todos. Do jeito que está colocado, parece que são duas atividades distintas e sucessivas. O mais fundamental é desenvolver; depois, distribuir, como consequência lógica. É verdade que admitem que deva acontecer simultaneamente, mas deixam claro que o segundo processo (o social) depende do sucesso do primeiro (o econômico). E volta camuflada a metáfora da divisão do bolo. Como se um produzisse a riqueza e o outro a humanizasse, — quando a riqueza humana deveria ser, desde o início, a finalidade da produção. Portanto, por trás das limitações políticas apresentadas por esse governo, há algo de muito errado no modo de medir a riqueza, o humano e o desenvolvimento. Para superar essas limitações, enseja-se uma nova métrica do valor, uma nova antropogênese, uma nova economia política do humano, — alguma ferramenta política a ser forjada, ainda magmática, entre o reenvolvimentismo perspectivista de Eduardo Viveiros de Castro e os materialistas Grundrisse de Marx.
Com um ano de governo Dilma, o desafio ainda passa por recompor os discursos e práticas, recriando estratégias dentro das lutas reais. Como nunca deixou de ser! Sem espaço para decepções paralisantes ou ranços de velha esquerda, resgatar o poder constituinte. Essas forças históricas que, desde as mobilizações do final da década de 70 e começo de 80, construíram nas lutas este futuro presente, tão surpreendente, — quando tivemos um presidente operário sindicalista seguido de uma presidenta mulher guerrilheira. Como é óbvio, só o conflito social e as mobilizações, quando potentes e produtivas, podem fortalecer os sentidos libertadores. Não é caso de ser contra ou a favor nem mesmo de disputar o governo. Qualquer governo. É preciso atravessá-lo com inventividade nas alianças e agenciamentos, polarizar os campos e errar e assumir os erros como percurso inevitável. Saber ousar, que venha 2012.