Por MARCO ASSENNATO
Premissa
Escrevo com mais dúvidas que certezas. O objeto que tento dissecar me faz mal, aperta o coração. No entanto, me parece que este não seja mais o momento dos bons sentimentos, reações histéricas ou belas almas que jogam com as palavras. 7 de janeiro de 2015. A data é política e abre um tempo quando corremos o risco de entrar na enésima longa noite reacionária. O lugar é Paris, um dos centros da Europa. Nenhum hexágono pode conter os efeitos do ocorrido, nenhuma bandeira nacional pode descrever-lhe as causas ou aliviar as suas dores. Para enfrentar essa tragédia — que de qualquer ângulo é tragédia odiosa, suja, insuportável — me parece que se imponha agora o exercício da razão: sóbria, rigorosa, cautelosa.
Portanto, o que segue é um pouco mais, e nada menos, do que uma primeira, parcial e limitada, uma bruta ferramenta para entender o dia, e enfrentar as ameaças que traz. É para tratar isto pelo que é: um esboço, um risco. O que não servir, que seja jogado fora. Mas se, ao contrário, qualquer indicação aqui mereça ser desenvolvida, que seja usada, alterada, transformada, definida pela prática.
Muitas coisas acontecem neste momento. As sirenes em Paris ensurdecem. Decerto que somente coletivamente se poderá chegar, e com todo o tempo necessário, a compreender melhor o ocorrido. Por enquanto, é preciso raciocinar: não precisamos de dribles narcísicos, não precisamos da garra daqueles mais afiados no juízo, nem da raiva e do ódio, da ânsia em identificar-se com os outros ou de rejeitá-los.
Aos efeitos e desejos que saibamos desenvolver em comum, neste momento, acrescentaremos o trabalho da razão. As paixões tristes, o medo e o ódio, qualquer forma de solidão, bem como qualquer fechamento identitário, serão objetivamente obstáculos sempre maiores ao exercício do pensamento e ações consequentes. Importa o que se pensa e como se pensa, hoje mais do que ontem — como faremos e como o faremos, mais do que nunca. Ponto.
1. Simbólico
Não me parece o momento de brincar de pequenos críticos de arte: Charlie me agrada/não me agrada; Charlie é engraçado/é sem graça; Charlie é um amigo político/não é amigo político; Charlie é sátira/é vulgar; Charlie é livre/é islamófobo; eu sou Charlie/eu não sou Charlie.
Graças a deus o Glavlit1 foi dissolvido e com ele todo o melaço demencial com que se pretendia mandar nas várias e diversas formas de expressão humana, em seus modos, conteúdos e formas adequadas. As formas do gosto e inclusive do mau gosto, por sorte, não são mais governadas desde cima. Assim, as distinções refinadas e indignações individuais, hoje, simplesmente são posturas fora de questão. Raciocinarei, diferentemente, sobre o simbólico que foi mobilizado ao redor do que ocorreu.
Nesses dias, vi vinhetas que trocavam as silhuetas das torres gêmeas pelos dois lápis dos chargistas. Bonitas ou feias que fossem essas vinhetas, entretanto direi: não. Sobre o plano simbólico, — e o tanto de político que tal dimensão revela —, o 11 de setembro de 2001 e o 7 de janeiro de 2015 são incomparáveis. Bonita ou feia que fosse, a revista Charlie Hebdo não é o World Trade Center e muito menos o Pentágono. O objetivo atingido foi outro, e mobilizou outro imaginário: as consequências deste dia terão, portanto, uma face diversa. Gostemos ou não: Charlie Hebdo é um periódico de sátira libertária e incorreta, ateu mais do que laico, anarcoide mais do que republicano. E, gostemos ou não, se trata de uma revista que marcou o imaginário de uma geração de pessoas. Além disso, que Charlie Hebdo reflita costumes, culturas e convicções — e, por conseguinte, preconceitos, macetes, impensados — de uma parte da sociedade francesa, é um pouco menos do que elementar: debruçar-se sobre esses macetes, seus limites, seus preconceitos, seus diferenciais e as sobras de tudo isto que cada um de nós agora possa pensar, não é nada digno e muito pouco útil neste momento.
O 7 de janeiro de 2015 é uma data política. Que em política não se queira racionar, pelo menos se esperava algum pudor de não afirmá-lo de uma maneira tão clara. O 7 de janeiro de 2015 alude a um modelo de sociedade, um modo de organizar as instituições: abre um campo imenso ao nacionalismo, novas articulações entre formas inéditas de fascismo com um mix de estratégias securitárias, projetadas a cada centímetro de nossas metrópoles, com apelos à rigidez da fé, identitária, cultural, territorial. Por isso, fomos todas e todos à Place de la République na tarde passada: porque foi sobre os nossos corpos e nossas formas de vida que se abateu o 7 de janeiro de 2015.
Muitas contradições, limites, ambiguidades e regurgitamentos neocoloniais vão ser achados nos lemas de indignação coletiva levados à praça, o que me parece óbvio. Que devam ser indagadas as causas profundas de tudo isto, é sem dúvida evidente. Mas aqui estaremos jogando uma partida rasa, entre a complexidade que habita a multidão na Europa, e um imenso dispositivo de identificação e isolamento de cada uma e cada um de nós. Somente aí vale dizer: je suis Charlie [eu sou Charlie]: quando Charlie é um nome coletivo ou, em vez de nome, é um signo anônimo, multíplice, usável hoje e somente hoje, por todas e todos. Quem não tem muito tempo para refletir, para se delongar, que adote esse nome neste momento.
2. Política
Na Place de la République, alguns grupelhos se apresentaram com bandeiras francesas, e um jovem barbudo teve a ideia de rasgar o Alcorão na praça. A eles foi dito, mais ou menos gentilmente, porém de qualquer modo com dignidade, para baixar as bandeiras, foi dito que o gesto não era bem aceito, que tinham se enganado o lugar e a ocasião. Para dizer a eles, esta não é uma questão nacional, e tanto menos uma questão de fé ou convicções individuais. Também se trata de evitar que alguém faça da religião uma forma de identidade coagida, e dos restos exangues do espaço nacional uma segunda comunidade compulsória. Duas belas gaiolinhas.
Na verdade, aqui estamos falando de um único espaço em que todos habitamos: a Europa multiétnica e com muitas fés, transcultural e mestiça como suas metrópoles, cidades e territórios. Se existe uma linha que divide em dois o campo deste tempo, é aquela que passa entre subjetivações múltiplas e abertas e a guerra entre culturas e identidades. Uma guerra que pode ser levada para dentro das populações europeias — guerra civil entre nós — e também para fora de suas fronteiras — como mais um capítulo da guerra global, ainda outra vez formadora da identidade do velho continente. De um lado, a via das multidões, do outro, a via da solidão, era assim que se dizia há um tempo. De um lado, parte da nossa inteligência coletiva, do outro, o identitarismo mais obscuro. Que a inteligência coletiva prevaleça depende das ações que colocarmos em prática, das modalidades dessas mesmas ações, e do próprio modo em que decidirmos raciocinar sobre o 7 de janeiro de 2015.
Não ajudam nisso as patéticas construções direitológicas, as teorias da conspiração, os fantasmas do Big Brother. Não nos ajudam hoje como nunca ajudaram. E não serve de nada acariciar o ventre mole da ortodoxia e seguir a dança macabra dos tak-taks. De um lado, estão a arte da guerra, as paixões militares e as kalashnikovas, a polícia, os exércitos, os estados e seus governos; do outro, a recusa da guerra e as razões da paz e da segurança para as multidões europeias. A gramática que escolhermos para raciocinar sobre o 7 de janeiro de 2015 é, em consequência, importante para as posições e ações que escolhermos adotar nessa divisão.
3. Genealogia
Alguém disse: não nos façamos de hipócritas. Estamos de acordo, então: toda lógica de parecença [rassemblement] indistintamente comunitária, ainda pior se comandada pelo alto a partir da unidade republicana, é para ser recusada como parte do problema que queremos combater. E quem afinal decidiu que o espaço da indignação coletiva deva ser relegado a quatro chefes de governo vestidos de terno, a um discurso institucional que, na França como noutros lugares, é excludente e violento? O que nos faz pensar que são ocasiões como esta, para conter o campo do imaginário público de estado duplo-idêntico de polícia/terror da fé?
Talvez fosse necessária a humildade para seguir cuidadosamente os processos, observá-los, atravessá-los antes de emitir um juízo. Se, além disso, quiséssemos raciocinar sobre o que aconteceu e então começar a escavar uma genealogia qualquer, se quiséssemos dissecar a radicalização de fé que hoje parece atravessar largos estratos sociais, como também o fechamento identitário e neofascista que volta a bater nas portas do presente; bastaria quem sabe, com humildade, repercorrer as rotas das migrações internacionais, mas desta vez delongando-se para celebrar os mortos que os vários dispositivos securitários das fronteiras disseminaram por toda parte, e depois repercorrer as guerras com as quais os governos dos estados euroatlânticos de todas as cores, por décadas, têm marcado a sua atuação.
Para nós, tornarmos a olhar aos nossos territórios, para encontrar o cotidiano daqueles sem renda, a agudeza de novas e mais gravosas pobrezas, a multiplicação das fendas e linhas de exclusão, a culpabilização e criminalização de comportamentos amiúde desesperados e em decomposição social e, apesar disso tudo, fundamentalmente ligados à perquirição por um modo de dominação: basta assim dedicar um pouco de tempo para observar a vida de um par de gerações jovens, inteligentes, vivazes, brilhantes, cheias de imaginação e, no entanto, constrangidas à infinita repetição de um destino de exploração e sofrimento. Basta colher todo o trabalho imaterial, cognitivo, culto, sapiente, trabalho grátis, contabilizar todo o lucro extraído por meio da inclusão diferencial, disposta na sistemática negação dos direitos, em nome da economia, do bem estar social e da educação, tudo em nome das regras do ajuste das contas. Em síntese: basta olhar na cara da austerity [programa de austeridade] ou daquilo que Jean Clet Martin chamou de comédia humana do débito que reina sobre a cena mundial. E então levá-los às últimas consequências, também e sobretudo em termos de invenção política, capacidade de usar e alargar todos os espaços possíveis, para revirar a Europa e convertê-la num espaço praticável às lutas contra as muitas formas de exploração. Eis a luta pela liberdade, contra os fundamentalismos e fascismos, essa que nos empurra a aproveitar, com ainda mais determinação, toda possibilidade, toda ocasião de romper o cerco mágico do “extremismo de centro” que está dominando a Europa, sob o signo de que “não há alternativa”.
Por isso, o ano que se abre pedirá aos movimentos sociais o mais lúcido empenho experimental, visando à transformação real e imediatamente praticável das relações de força. Outra coisa que não unidade nacional de emergência ou lutas identitárias: aproveitaremos, com ainda mais convicção, toda ocasião política que possa servir para afirmar a Europa como terreno pós-nacional e pós-soberano de conflito contra as formas múltiplas e heterogêneas de exploração e opressão.
4. A marcha
Num tempo distante, um juiz perguntou quem és? a um cidadão que se recusou a dar o nome e respondeu: proletário. Arqueologia. Noutros tempos, menos distantes, o homem com o cachimbo e a balaclava encontrou um jeito de tirar as botas com crostas de lama depois de uma longa marcha e respondeu: “sou gay, lésbica, negro, asiático, chicano, anarco, palestino, sou um índio maia, judeu, cigano, mohwak, sou um pacifista, uma mulher sozinha na cidade, um cidadão sem terra, um membro de uma gangue numa favela, um operário sem trabalho, um estudante infeliz, sou um espelho.”
Quiseram as torres gêmeas para tentar cobrir aquela voz sutil. E a tentativa de calá-la, no entanto, falhou. Era o tempo de uma estação autônoma e riquíssima de democracia radical. Também naquela época, havia um florilégio de nomes, e também naquela época os tenores da ortodoxia revolucionária exercitaram a arte da distinção entre amigos e inimigos políticos, também naquela época eles foram especialistas em táticas militares, campeões de retórica da guerra, pequenos espíritos mascarados com grosseiros signos viris.
Venceu, no entanto, a respiração da democracia radical e o corpo coletivo do movimento globalizado, companheiras e companheiros — ou como se dizia naquele tempo com grande escândalo para alguns, irmãs e irmãos — assumimos outra direção. Saímos pela tangente quando a espiral da guerra e do terror se fechava, e encontramos as praças.
Hoje, o homem com o cachimbo e a balaclava não existe mais, ele passou o bastão, agora tem nome próprio. E, no entanto, ainda outra vez a violência das armas tenta calar a voz de quem responderia àquela odiosa pergunta: quem és? com aquela longa lista de nomes. Mas hoje, antes de responder, sucede de recolocar as botas. E recomeçar a marchar.
Glavit: Direção-Geral de Assuntos Literários e Editoriais (em inglês: Main Administration for Literary and Publishing Affairs) ou Glavlit (em russo: Главлит) era o órgão oficial de censura e de proteção de segredos de estado na União Soviética, fundado oficialmente em 1922, que funcionou até 1991. ↩