SANDRO MEZZADRA.
No outono de 2014 H&M lançou uma coleção de moda feminina claramente inspirada nos uniformes das combatentes curdas, cujas imagens têm circulado nas mídias pelo mundo fora. Mais ou menos ao mesmo tempo, as forças de segurança turcas reprimiam os curdos que expressavam, na fronteira com a Síria, sua solidariedade com Kobani –a cidade que resiste faz muitas semanas o cerco do Estado Islâmico (EI). Essa fronteira, que tem sido incrivelmente porosa para as milícias jihadistas, está atualmente hermeticamente fechada para os combatentes do PKK, que se esforçam para chegar a Kobani. A cidade curda da Síria está sozinha diante o avanço do EI. Para defender a cidade há apenas um punhado de combatentes das forças populares de autodefesa (YPG/YPJ), armados com fuzis kalachnikovs para enfrentar os veículos blindados e a artilharia pesada do EI. As intervenções da “coalizão antiterrorismo” dirigida pelos Estados Unidos têm sido –pelo menos até seis de outubro– esporádicas e totalmente ineficazes. Algumas bandeiras pretas se agitam já sobre Kobani.
Mas, quem são os e as combatentes do YPG/YPJ? Por aqui (na Itália) os médios de comunicação os chamam frequentemente de peshmerga, um termo que com certeza agrada pelo seu “exotismo”. Pena que os peshmerga sejam membros das milícias do KDP (Partido Democrático do Curdistão) de Barzani, chefe do governo da região autônoma do Curdistão iraquiano. Quer dizer, justamente essas milícias que abandonaram suas posições ao redor de Sinjar no início de agosto, deixando o caminho livre para o EI e colocando em risco a vida de milhares de Yazidis e de outras minorias religiosas. São as unidades de combate do PKK e o YPG/YPJ que finalmente atravessaram a fronteira e intervieram, com uma eficácia notável, como parte da luta que mantêm, há meses, contra o fascismo do Estado Islâmico.
É verdade que o EI foi “inventado” e encorajado pelos Emirados, as petro-monarquias, os turcos e os americanos; mas no terreno não se trata de nada diferente ao fascismo. Nos lembra disso o projétil com o qual se matou em Kobani, no dia 3 de outubro, Caylan Ozalp de 19 anos, para não cair nas mãos dos torturadores do EI. Alguns a chamaram de kamikaze, mas como não enxergar o vínculo entre aquele projetil (aquele gesto extremo de liberdade) e a pílula de cianeto que, da Itália à Argélia até a Argentina, carregavam em seus bolsos gerações de partidários e de combatentes contra o fascismo e o colonialismo?
E como não enxergar as razões pelas quais o EI concentrou suas forças em Kobani? A cidade é o centro de um dos três cantões (junto com Afrin e Cizre) que foram constituídos em “regiões autônomas democráticas” de uma confederação de “curdos, árabes, assírios, caldeus, turcomanos, armênios e chechenos”, como dito no preâmbulo da extraordinária Charte de Rojava (nome do Curdistão ocidental ou sírio). É um texto que fala de liberdade, de justiça, de dignidade e de democracia; de igualdade e da “busca de um equilíbrio ecológico”. Na região da Rojava, o feminismo não é apenas incarnado nos corpos dos e das combatentes em armas, mas também no princípio de participação paritária em todas as instituições de autogoverno que, dia após dia, desafiam o patriarcado. E o autogoverno, apesar das muitas contradições e das condições adversas, expressa verdadeiramente um princípio comum de cooperação entre homens e mulheres livres e iguais. Ainda mais: consistentemente com a postura antinacionalista do PKK de Ocalan, ao qual as YPG/YPJ estão vinculadas, elas recusam tanto o absolutismo étnico e o fundamentalismo religioso, quanto a própria inflexão nacionalista que tinha caracterizado, até agora, a luta do povo curdo. E isso tudo, no Oriente Médio de hoje, onde por razões confessionais ou étnicas se degola e se é degolado.
Basta ouvir as e os combatentes do YPG/YPJ –o que não é difícil graças à internet– para compreender que essas moças e esses rapazes, essas mulheres e esses homens, pegaram as armas para afirmar e defender essa forma de viver e de cooperar. É fácil então compreender as razões da ofensiva do EI contra Kobani. Mas também é fácil compreender porque não intervêm na sua defesa os turcos, líderes da OTAN na região; e por que o suporte da “coalizão antiterrorismo” permanece tão timorato. Tentem imaginar agora o que os emires do Golfo podem pensar da experiência da Rojava e do princípio de “equidade de gênero”. Para os Americanos, os ocidentais… as moças sorridentes carregando um kalachnikov podem ser muito glamorosas, mas para os Estados Unidos e a União Europeia, o PKK continua sendo uma organização “terrorista”, cujo líder foi entregue às prisões turcas pela astúcia da “raposa do tabuleiro de xadrez” (conforme a expressão de Massimo d’Alema)1. Além do mais, não é que o PKK nasceu como organização marxista-leninista? Afinal, se trata ainda de comunistas.
E então? Deveríamos ser aqueles que reivindicam esse comunismo, aqueles que vão para a rua e se posicionam em defesa de Kobani e da Rojava. Aqueles que reinventam, a partir daqui, de forma evidentemente material, a oposição à guerra. Em Rojava devemos reencontrar as conexões com nossa história mais recente, devemos ser capazes de escutar os ecos de Seattle, de Genova, do zapatismo. Porque esses ecos estão lá. Nós devemos, sobretudo, perceber que se existe um fio vermelho que atravessa as revoltas do Magreb e do Mashreq em 2011, passando pelo M15 espanhol e o Occupy, até os levantamentos brasileiros e turcos do ano passado, hoje em dia o fio passa pelas ruas de Kobani e da Rojava.
Atualmente, a guerra está nas fronteiras da Europa, entra nas nossas cidades com os movimentos de mulheres e homens em fuga, quando não terminam no fundo do mar Mediterrâneo. Mas, com a crise, a guerra ameaça também com se traduzir no engessamento das relações sociais e o governo autoritário da pobreza. Guerra e crise: esse binômio não é novo; mas suas formas atuais são novas: na relativa crise da hegemonia americana, uma das principais caraterísticas da atual fase da mundialização, a guerra estende sua violência “que despoja” sem que no horizonte se vislumbrem cenários realistas de reconstrução, sejam eles os melhores ou não. O caso da “coalizão antiterrorismo” é uma ilustração desse impasse.
Sair desse impasse é uma condição necessária para que as lutas contra a austeridade na Europa ganhem terreno. E isso só é possível afirmando e aplicando os princípios da organização da vida e das relações sociais radicalmente inconciliáveis com as razões da guerra. É por isso que a experiência da Rojava é exemplar para nós. Enquanto em Kobani se combate casa por casa, milhares de pessoas manifestam enfrentando a polícia em Istambul e em outras cidades turcas e centenas de curdos irromperam na sede do Parlamento Europeu em Bruxelas. Muitas vezes ouvimos dizer que falar de uma ação política a nível europeu é pecar por abstração. Porém, imaginemos qual seria a situação se do lado dos curdos houvesse um movimento europeu contra a guerra, capaz de conseguir uma mobilização análoga a aquela de 2003 contra a guerra em Iraque, mas essa vez com um interlocutor no terreno. Acaso as condições não estão dadas? Mais uma razão para se engajar na sua construção. É um sonho? Alguém disse um dia que para ganhar é preciso saber sonhar.
Trad. Angela Facundo
Em 1998, Ocalan, em busca de asilo político, numa passagem rápida pela Itália foi “convencido” pelo governo italiano para sair para o Quênia, onde ele foi finalmente preso pelos serviços secretos turcos. Massimo D’Alema era presidente do Conselho para a centro-esquerda. “La Volpe del Tavoliere” é o apelido que Luigi Pintor, jornalista do Manifesto, deu-lhe. Literalmente significa “a raposa do tabuleiro de xadrez”. Na realidade, o “Tavoliere ” também é uma maneira de apontar a planície de Puglia, região onde D’Alema nasceu (nota dos tradutores da versão francesa). ↩