di HUGO ALBUQUERQUE.

29/12/2011

Dilma Rousseff iniciou seu mandato com o duro desafio de substituir seu mentor, e grande fiador de sua eleição, Luis Inácio Lula da Silva, cujos índices de popularidade batiam na Lua quando deixou o poder. Dilma, um ano depois, possui aprovação recorde para um primeiro mandato presidencial,  superando o próprio Lula. O governo Dilma tem o apoio de quase três quartos dos brasileiros – e ele ainda é considerado ótimo ou bom por mais da metade. Levando em consideração que ela foi eleita com uma votação inferior a Lula e FHC, é um fenômeno político interessante.

É verdade que Dilma tornou-se mandatária nas circunstâncias políticas e econômicas mais favoráveis desde sempre: ela sucede um governo muito bem avaliado, do qual fez parte, e foi eleita com as bençãos de seu antecessor. Seu primeiro ano, por se tratar de uma continuidade, foi mais simples do que o de seus antecessores, que assumiram em condições piores e precisando pôr em prática um projeto novo – normalmente com razão -, o que leva aos naturais choques que a materialização de projetos políticos causam.

Isso, no entanto, não significa que Dilma simplesmente manteve, ou que poderia ter mantido, inercialmente o governo Lula. Ela, naturalmente, imprime seu modo próprio de capitanear o projeto que herdou – e ajudou a desenvolver -, o que é perceptivelmente diferente do seu antecessor, inclusive pela formação política de cada um – ele, um sindicalista, ela uma ex-guerrilheira cujo papel na política partidária sempre foi eminentemente “técnico”.

Não existe nela, como em Lula, uma flexibilidade negocial ao estilo do neosindicalismo e sua franca disposição de lidar com as diferenças, baseado em uma lógica de semelhanças, visando  à sua articulação: em seu lugar, entra uma crença na racionalidade do trato com a coisa pública, cuja administração demandaria certa coerência lógica materializada em procedimentos de validade universal e efetividade objetiva. Isto é, para Dilma, a administração, no limite, é exata, enquanto para Lula não – ou, pelo menos, não totalmente.

Dessa forma, em Lula, conviviam um Ministério da Fazenda neokeynesiano com um Banco Central neoclássico, uma Casa Civil desenvolvimentista com um Ministério do Meio-Ambiente  ambientalista. Na cabeça de Lula, sem precisar recorrer a muitas formulações filosóficas, todas essas razões podiam ser úteis e articuláveis entre si, enquanto para Dilma é necessário, como ela fez, uma racionalização, um enquadramento. Seja já na disposição inicial dos ministérios – seus ocupantes, sua relação entre si – e, depois, com sua lenta reforma ao longo do primeiro ano, na chamada faxina – sobre a qual falaremos mais adiante – até sua conclusão, agora, na reforma ministerial.

Nesse sentido, Dilma difere não apenas de Lula como da governança petista média, pois por mais que sindicalistas, católicos e socialistas (e o plural, no último caso, é dobrado, se aplicando à quantidade de sujeitos e de socialismos dentro do PT) discordem entre si, existe uma convergência no partido da estrela: gestão política do Estado. E o significado disso é claro,  um governo calcado não só na subordinação às demandas sociais como também construído de acordo pelo amplo debate, tendo em vista que não há certezas absolutas e caminhos únicos, mas uma constante escolha de caminhos.

Essa concepção do que fazer com a máquina estatal, certamente, é o opunha os dois grandes projetos de esquerda que disputavam a hegemonia daquele campo nos fins dos anos 80: o PDT de Leonel Brizola, o getulismo social e trabalhista tardio com uma herança positivista inconfessável, e o PT de Lula. A decisão sobre qual face a esquerda brasileira tomaria na democracia resolveu-se nas urnas, no pleito de 1989 com Lula indo ao 2º turno contra Collor, após bater Brizola – ano em que a própria Dilma pertencia aos quadros do PDT, coisa que iria se manter ainda por mais de dez anos, até sua filiação ao PT gaúcho.

Depois dos anos 80, vamos assistir a uma disputa parecida, embora em outros termos, na qual Lula enfrenta Geraldo Alckmin nas presidenciais de 2006: o argumento central do conservador Alckmin é de que a política não funcionava e o país precisava, pois, ser administrado gerencialmente, como uma empresa. Não que isso, no limite, não existisse também no PT, que sempre vislumbrou, ecoando um leninismo tardio, um dualismo no qual o “técnico” estaria subordinado ao político, causando uma clivagem no governar, entre o que está na esfera da necessidade de manutenção do Estado e o que está no campo de suas possibilidades.

Cá do nosso lado, temos dúvidas, de fundo ontológico, sobre a validade dessa “técnica” e até que ponto não estaríamos falando de tipos diferentes de fazer política. Seja como for, o primeiro ano do governo Dilma, e possivelmente todo o resto, foi trespassado pela busca de uma coerência racional na organização dos ministérios e na relação com o Congresso, o que provocou atritos com a base aliada – embora o governo não tenha perdido nenhuma votação que desejasse realmente vencer.

Junto dessa virada, temos uma mudança de estratégia: a busca por distensão com setores que estiveram em lados opostos nos últimos anos. O governo buscou “normalizar” relações com a mídia corporativa, com FHC, com a oposição, sobretudo com a fabulosa articulação de Gilberto Kassab, que resultou na criação da quarta legenda do país, o PSD (nascido de uma debandada de parlamentares e lideranças do direitista DEM), nascido já com a vocação de negociar com o governo – isto é, fazer a velha política de permuta de cargos por votos no Congresso, algo interditado pela direção demista e seu canino oposicionismo.

Existe, em consequência disso, surge um visível desconforto de vários setores petistas e de esquerda quanto ao governo Dilma, enquanto, paralelamente, ocorre a deserção de setores oposicionistas – parlamentares ou mesmo a base eleitoral. O governo Dilma, portanto, coloca-se rigorosamente ao centro do debate político com sua imagem de neutro, objetivo e técnico, mantendo o apoio dos trabalhadores e dos pobres, ao mesmo tempo em que traduz as demandas sociais no campo dos grandes números – sai a conferência e o debate público, já escassos no próprio governo Lula, e entra a estatística – voltado para políticas públicas.

Das mudanças ministeriais, pelo menos as duas mais relevantes, a saída de Antônio Palocci da Casa Civil e de Nelson Jobim da Defesa são um caso à parte. O primeiro, entra na esfera das disputas internas que marcaram a campanha de Dilma em 2010 e era previsível, embora não tão precocemente. O segundo, conservador e ligado aos militares, era mantido por Lula como seu porta-voz, mas com pouco poder e com menos chances ainda de conquistar algo mais, ele se lançou numa guerra interna contra o governo, por dentro dele, até se chocar com Dilma de forma jocosa, em uma entrevista à revista Piauí, e terminar demitido.

As outras mudanças, aí, sim, entram no plano da chamada faxina. Ministros da base aliada sofreram denúncias pesadas na mídia e foram abandonados à própria sorte até deixarem o cargo junto ao seu staff. Em todas as situações, a imagem de Dilma passou incólume e os ministros tombados. Também não era segredo para ninguém o quanto Alfredo Nascimento (PR-AM) incomodava Dilma no Ministério dos Transportes, estratégico para o PAC e paralisado há tempos. O mesmo se pode dizer da Agricultura sob o comando de Wagner Rossi (PMDB-SP), aliado fraterno de Michel Temer, cuja queda enfraqueceu o vice-presidente – e embora Temer tenha mantido aquele ministério sob seu controle, é fato que perder um aliado como Rossi não foi pouca coisa.

Enquanto isso, uma reforma política propriamente dita não decolou. Uma comissão no Senado trabalhou em torno disso, já teve algo relatado pelo Henrique Fontana na Câmara, mas até agora nada saiu do lugar. Aliás, Dilma havia suscitado a ideia confusa de constituinte exclusiva, bola levantada também por Marina no debate do UOL, coisa que ela não levou adiante. A própria reforma que passa na Câmara já tem a marca evidente do PMDB, no que toca à reforma do sistema eleitoral – o “distritão misto” – e não sabemos até onde o PT se empenhará mesmo na busca do financiamento exclusivamente público de campanha – uma vez que não está longe de haver concordância entre a base aliada.

No campo da política econômica, o novo funcionamento da equipe, coordenado e unitário – com o fim do dualismo entre Fazenda e BC – foi testado. Em um primeiro momento, ele teve de lidar com o recuo dos instrumentos monetários e tributários de incentivo, mecanismo típico de governos que usam uma lógica contracíclica – isto é, economizar nas vacas magras para gastar nas crises -, mas foi pego no contrapé do movimento em W da crise mundial. Cenarização errada, mas que teve resposta rápida com redução dos juros, abaixo do que o mercado reivindicava em Setembro, mecanismos tributários de proteção da indústria nacional e incentivos ao crédito de pessoa física. O crescimento de 2011, mesmo assim, será menor do que o esperado.

Para 2012, o governo acena com mais mudanças. O já programado grande aumento do salário mínimo virá acompanhado de mais medidas de ampliação do mercado creditício, mais incentivos tributários e quetais. Típicas medidas neokeynesianas de fortalecimento do mercado interno, o que vai na contramão das políticas de resolução de crises por ajustes contra o Trabalho, visto na Europa de hoje – e que vai no sentido do que ainda enxerga o PSDB. O governo Dilma segue em uma direção franca e tradicionalmente welfarista, menos no sentido de dar uma vazão revolucionária à produtividade – como algumas experiências mais radicalizadas da social-democracia do pós-guerra até fizeram – e mais em organizar a sociedade em torno do Trabalho.

Nesse aspecto, impossível não conectar esse welfarismo com as políticas do Ministério da Cultura, alvo de críticas constantes e contundentes de ativistas da área, o que termina por ser potencializado pela torpeza da sua ocupante, Ana de Hollanda: política cultural voltada para a construção de uma indústria nacional, assentada na figura do “artista”, e menos para políticas moleculares que se desdobravam por dentro sociedade, com inaugurado por Gilberto Gil – e continuada por Juca Ferreira, seu sucessor -, cuja atuação no MinC foi a grande surpresa positiva do governo Lula.

O mesmo pode-se dizer das grandes obras do governo, uma delas, o Plano Nacional de Banda Larga (PNBL) – que pode alcançar as mais diversas formatações, daí sua estruturação ser alvo de uma intensa disputa – e a usina hidrelétrica de Belo Monte – que era alvo de disputa dentro do governo Lula, mas com a ascensão de Dilma tornou-se sua cereja do bolo.

O primeiro, não saiu do papel sequer ainda, embora tenda a ter um modelo sob o controle e o agrado das empresas que controlam o setor telefônico – com valor barato, mas com uma qualidade que não ameaça seus planos de banda larga, como o Speedy da Telefonica -, o que consiste em um fiasco duplo do ministro Paulo Bernardo, seja projetivo ou de implementação do mesmo. A usina de Belo Monte, por sua vez, é alvo de controvérsias judiciais e de campanha popular contra ela. O ponto central das críticas ao projeto é o seu impacto sobre o Rio Xingu e, por tabela, sobre o Parque Nacional do Xingu onde vivem quase três dezenas de povos indígenas diferentes.

A questão da produção energética, aliás, perpassa a atuação de Dilma ao longo do governo Lula. Ela assumiu as Minas e Energia no auge do chamado Apagão – a crise energética, nascida no governo FHC, que ameaçava chegar ao ponto de racionamento de energia nos domicílios – e conseguiu articular saídas para o pior no curto prazo, ainda assim, como é público e notório, os custos com energia elétrica no Brasil são dos mais altos no mundo – onerando fortemente consumidores domésticos. Questões que se levantam em relação a Belo Monte são, precisamente, a própria eficiência da planta industrial que Dilma pretende expandir, mas é um debate que atravessa, fatalmente, o modelo de desenvolvimento – o que jamais poderia ser desvinculado da engenharia energética que lhe move, como colocado aqui há meses.

Também foi vista movimentação intensa nas pastas de Educação e Justiça, ambas chefiadas por notórias figuras da esquerda do PT. No MEC, Fernando Haddad, em seu último ano na chefia da pasta – ele se retira para se disputar a Prefeitura de São Paulo – tocou adiante o Plano Nacional de Educação, conseguiu negociar o aumento gradual de verbas para o setor e manteve o trabalho inercial de inclusão no ensino superior e de reestruturação das competências do ensino médio e fundamental. Na Justiça, José Eduardo Cardozo começou o ano acossado com pressão Planalto para demitir um secretário seu, Pedro Abramovay, por suas declarações sobre política criminal e a questão das drogas, depois, coordenou o processo de constituição da comissão da verdade, cujos trabalhos se iniciam este ano, em cima de críticas por sua limitações – em comparação aos vizinhos latino-americanos.

Do ponto de vista da política externa, Dilma adotou, com Antônio Patriota como chanceler, uma linha retórica low profile – em contraste com a retórica não-alinhada de Celso Amorim, ideólogo da política externa contemporânea e atual ministro da defesa -, mas depois de uma inflexão assumindo o discurso dos direitos humanos nos termos do Ocidente, voltou atrás e colocou-se na mesma posição de antes, alinhado com os Brics e o Sul. O processo de integração sul-americano segue em curso, o que combinado com a decadência americana, provoca um reviravolta mesmo em governos conservadores recém-eleitos, como o de Sebastían Piñera no Chile e o de Juan Manuel Santos na Colômbia – o que torna as posições de Serra em matéria de política externa incrivelmente anacrônicas.

Elas por elas, Dilma está em uma posição, hoje, confortável. O que não quer dizer que seja boa.  Ela já está diante de uma liberação intensa do potencial da massa pobre que, até outro dia, era posta em seu lugar, resignada e desautorizada a desejar; isso, agora lhe é favorável, mas certamente testará, tão logo, os limites da democracia representativa – o que ela espera conseguir evitar por meio da gestão pública “racional”, do welfare (a articulação entre política encastelada no Estado, produção encapsulada nos moldes do trabalho empregado e vida normatizada pela família) e, é claro, do progresso.

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